
CONTO DE NATAL
O PASTOR E O SILÊNCIO
Na montanha onde o pastor apascentava as suas ovelhas, o vento frio que vinha dos lados da Serra da Estrela era de tal forma violento, que enregelava todo o corpo daquele idoso pastor, cuja vida tinha sido sempre pastorear ovelhas.
Todavia aquele Inverno parecia-lhe que estava a ser mais rigoroso do que o habitual.
Talvez fosse pela idade que já tinha. Os muitos anos que por ele já haviam passado iam deixando marcar e a energia de outros tempos ia-se desvanecendo.
Este era afinal apenas mais um Inverno que ia viver naqueles montes junto dos animais que de tanto os estimar, até lhes tinha dado um nome a cada. Ele conhecia-os tão bem que acabava mesmo por os identificar individualmente.
Na realidade eles faziam parte de si.
De resto quase poderia dizer que, na realidade eram a sua família.
É verdade que com a idade alguns iam morrendo, mas logo eram substituídos por outros que no rebanho iam nascendo
Faziam parte da sua família.
Bem, não era bem assim, pois com ele no monte vivia também uma sua irmã.
Era a Maria Antónia que, por nascimento tinha vindo ao mundo com um pequeno atraso mental.
Ele, conhecido por o João do Monte, -por lá passar a sua vida-, tinha também um problema que muito o amargurava. A sua perna direita era mais curta que a esquerda, o que o obrigava a coxear e por isso lhe dificultava o andar.
Amparavam-se um ao outro, mergulhados na tristeza de uma vida sem horizontes.
Para eles o mundo eram os montes onde viviam.
Havia ainda outro irmão mais velho que eles, o “Senhor Joaquim”.
Mas esse era apenas o Patrão
Não sabe se pelas deficiências que ele e a irmã tinham, ou se por qualquer outro motivo, mas a verdade é que na realidade o Senhor Joaquim, -que era assim que gostava que o tratassem-, para ele e sua irmã Maria Antónia não passava do Patrão e eles de seus criados.
Tinham sido colocados ainda jovens naquela propriedade do monte que era conhecida pelo nome de a “Quinta do Sabugueiro”, e que o irmão dizia que a tinha comprado em vida aos pais e ali permaneciam tratando do gado e da horta de onde saíam tudo o que era fruta e legumes para abastecer a casa do Senhor Joaquim.
Os seus pais, devido a uma epidemia que assolou a região e por falta de assistência, tinham falecido ainda eles eram criancinhas muito novas.
De raro em raro um deles ia à povoação mas, chegavam já tardinha e logo tinham de regressar.
Até dava a impressão que o Senhor Joaquim não queria que os habitantes da aldeia os vissem na sua companhia e, por tal motivo, logo que descarregavam os géneros alimentícios que traziam no burro para consumo do Patrão, regressavam à “Quinta do Sabugueiro”.
Na Quinta, além dos cabanais e do “bardo” para recolha dos animais, havia também uma cabana com dois quartos, um para cada e um outro compartimento maior que servia de cozinha e de sala. Era neste compartimento que ele e a Maria Antónia passavam horas seguidas à noite, em especial no Inverno, junto à lareira.
Tanto ele como a irmã não sabiam ler e por isso a conversa entre eles baseava-se sempre naquilo que os rodeava:- os animais, o tempo que fazia e a horta.
Contudo havia uma época do ano, que coincidia sempre com a altura em que mais frio fazia e em que o Patrão, o Senhor Joaquim, lhes ordenava que levassem mais géneros alimentícios, que lhe trazia uma imensa tristeza.
Em especial a ele, pois a Maria Antónia mal se apercebia do que a rodeava.
Era o dia de Natal e em especial a noite que o antecedia.
Esta enorme tristeza era-lhe lembrada pelo toque do sino da Igreja, o qual, embora distante, e devido ao silêncio da noite, era perfeitamente audível na “Quinta do Sabugueiro”.
É que embora fosse muito pequeno, lembrava-se, antes dos pais falecerem, de ter ido àquela hora à missa a que ouvia chamar “Missa do Galo”.Recordava com todo o pormenor uma construção coberta de musgo e ornada com diversas figuras feitas de barro pintado de diversas cores.
Na sua memória de jovem que na altura era, lembra-se de haver naquela construção a que chamavam Presépio, uma vaca, um burrinho, três camelos, algumas ovelhas e diversas figuras que representavam pessoas. Os seus pais diziam-lhe que eram os três Reis Magos, mais uns pastores e ainda uma Família que eles diziam ser Maria,José e um Menino muito pequenino a que chamavam Jesus.
Aquele Presépio era na verdade muito bonito mas, o que lhe chamava mais à atenção era o facto de todas as pessoas que estavam na igreja de alinharem e em fila iam beijar aquela pequenina Figura, que era exatamente o Menino Jesus.
Todavia uma coisa o entristecia imenso era o facto do menino estar deitado numa manjedoura, sobre os restos da palha que os animais tinham deixado.
Tudo isto ele tinha gravado no seu subconsciente e com todo o pormenor guardava na sua memória e, fechando os olhos, beijava-a, lembrando aquelas distantes noites e as suas respetivas “Missas do Galo”.
Lembrava-se também que ao chegarem da missa toda a família se reunia e comiam o “arroz do galo” assim como uns fritos chamados filhós de que muito gostava mas que raramente voltou a saborear.
Lembrava-se.......e em silêncio todos os anos, naquele mês frio de Dezembro, ele ia ao monte procurar musgo para fazer o seu Presépio que ornamentava com figuras idênticas às que vira no Presépio da sua aldeia, mas estes feitos de madeira que tinha esculpido com todo o carinho e, como que em oração recitava:
Ó meu Menino adorado
Lembra-te sempre de mim
Tu és o meu Deus Sagrado
Por isso te peço assim
Eu também já fui menino
Também tenho a minha cruz
Sofro desde pequenino
Ajuda-me Menino Jesus
Tu nasceste num palheiro
E morreste numa cruz
Parece que o mundo inteiro
Se esqueceu que és Jesus
FAfonso